Muitas histórias já foram contadas sobre a noite de 28 de junho de 1969 e o que aconteceu no Stonewall Inn, bar localizado na Christopher Street, parte baixa de Manhattan. O local foi palco para uma revolta que eclodiu a partir de um confronto entre os LGBTs que frequentavam o bar e a polícia truculenta de Nova York, dando origem ao que, hoje, conhecemos como marchas do Orgulho LGBT – e o movimento politicamente organizado como um todo. Porém, recentemente, a história de Stonewall tem sido contada de forma diferente do que eu ouvia quando iniciei no movimento LGBT, aos 18 anos, no fim da década de 90. Agora, o episódio ganha duas protagonistas: Sylvia Rivera e Marsha P. Johnson.
Sylvia Rivera, latina, se identificava como drag queen e lutava incansavelmente pelos direitos de pessoas transgêneras e de gênero não-conformistas. Recentemente, Sylvia passou a ser amplamente reconhecida por atirar o primeiro sapato e os primeiros “coquetéis Molotov” nas rebeliões de Stonewall. Ela também iniciou um grupo focado em oferecer abrigo e apoio aos jovens queer sem teto e lutou contra a exclusão de transgêneros no New York’s Sexual Orientation Non-Discrimination Act. Foi ativista até sua morte, participando da Empire State Pride Agenda sobre a inclusão trans.
Marsha P. Johnson era uma mulher negra trans, trabalhadora do sexo e ativista, que passou grande parte de sua vida lutando por igualdade. Ela era uma figura materna para drag queens, mulheres trans e jovens sem teto na Christopher Street, em Nova York.
É comum notarmos nos depoimentos de Sylvia a queixa que, mesmo em uma região considerada submundo de Manhattan, havia muito pouco espaço para mulheres trans e drag queens. Segundo ela, que ajudou a iniciar e fortalecer o movimento ao lado de Marsha P. Johnson, “o Stonewall não era um bar para drag queens”. “As pessoas dizem ‘era um bar de drag queens e de negros’. Não, esse era o Washington Square Bar. Você até poderia entrar no Stonewall se eles te conhecessem, mas só certo número de drags eram permitidas naquela época.”
O confronto entre a polícia e os LGBTs de Stonewall seria apenas o começo da organização desta comunidade como um grupo, com agenda politica e social. Logo em seguida, diversos coletivos começaram a se organizar para avançar na criação de mecanismos legais que protegessem essas pessoas dos ataques do Estado e garantissem o mínimo de liberdade para esses indivíduos.
Nesse período, o coletivo chamado STAR (Street Transvestite Action Revolutionaries) foi criado por Sylvia Rivera e Marsha P. Johnson, na Universidade de Nova York, com objetivo principal de aprovar a Gay Rights Bill, uma petição de projeto de lei feita pelo grupo de drag queens da cidade de Nova York. O movimento em torno da petição começou em 1970, mas a lei contra a discriminação de pessoas LGBTQ+ em Nova York só seria aprovada em 1986.
Após a aprovação da lei, Sylvia se declarou ressentida com a comunidade. Para ela, as drag queens e transsexuais desenvolveram o projeto e trabalharam muito para que ele fosse aprovado, mas não receberam o devido reconhecimento por isso. Pelo contrário, foram preteridas por uma comunidade massivamente gay, masculina e branca. “Drag queens fizeram isso. Nós fizemos isso para os nossos irmãos e irmãs. Mas poxa, não fiquem nos colocando no segundo plano e nos esfaqueando pelas costas… Isso é o que dói de verdade. Isso é o que nos entristece”, desabafou Sylvia em uma das suas entrevistas públicas na época.
Sylvia e Marsha foram apagadas pelo machismo e o higienismo com que a História sempre fora escrita e permaneceram figuras desconhecidas por anos. Isso influenciou para que chegássemos ao conservadorismo de 2021, a uma sociedade que teima em não enxergar a transexualidade na adolescência, a necessidade de inserção das pessoas trans no espaço escolar, a equidade nas oportunidades de trabalho.
A sociedade nos deve uma reparação histórica e social. Chamo uma reflexão coletiva para a necessidade de oportunizarmos a existência de homens e mulheres trans dentro desse sistema social feito por e para cisgêneros, seja no supermercado, passando pelo atendimento médico, até numa porta de banheiro.
Esse “cisgenerismo” que não reconhece a transexualidade e a travestilidade já nos invisibilizou muito e não pode ser visto ainda como página virada, já que contamina até mesmo o comportamento de nossos pares, influenciados pelo machismo estrutural que está impregnado em nossa sociedade.
Salve, Sylvia, Marsha, Janaina, Marcela, Michelle, Charla, João, Anyky, Bruna, Marina, Amanda, Hanna, Rhany, Brandon, Valeria, Sarah, Paula, Brenda e muitas outras vidas trans que doaram parte das suas vidas por nossa existência. Essa luta também é nossa!
Tathiane Araújo
Presidentra de Rede Trans Brasil